16.8.11

Tete - Cidade de Pó

Através do ar amarelo ele consegue distinguir 3 cores: verde, vermelho e azul. Há uma quarta, o castanho, mas as primeiras disntinguem-se qual areia de uma ampulheta tricolor. Invadem as ruas, as pragas, as estradas. E depois, como num passo de mágica, desaparecem dentro de edifícios. A acompanhar esse mar de cor, turvo do pó amarelo, vem um burburinho que lhe invade o pensamento. São várias línguas com vários sotaques misturadas com outros dialectos a falarem de um mesmo tema: trabalho. Após 15 minutos, tudo acaba. As massas coloridas refugiam-se do pó amarelo em edifícios selados a ar-condicionado.

Lá fora, tudo acalma e apenas ficam duas cores: o amarelo do pó e o castanho das pessoas locais. Esses não têm direito a ar-condicionado. Nem sequer a água potável, electricidade ou comida em quantidades aceitáveis. O seu sonho é um dia ter direito a uma camisa verde, vermelha ou azul, e ao ar-condicionado que as acompanha. Mesmo que esses privilégios sejam acompanhados pela tarefa de consumir a terra que os viu nascer, onde brincaram, estudaram e da qual se alimentaram. Nessa altura, a terra vivia do sol, agora serve para alimentar a idade do fogo. Entretanto, tudo o que sobra dela é o pó. E a esperança de que, um dia, quando voltar a percorrer as ruas - já vestidos com uma camisa colorida e a acelerar passo para chegar ao ar-condicionado - inspire um grão de pó que o viu aprender a letra "i". Aí, nesse reencontro entre passado e presente, irá perceber o futuro.

Nesses dias que estão para vir, nada será igual ao que era e ao que foi. Excepto o pó amarelo que paira no ar, tolda a vista e seca os pulmões. Mas aí já não haverá marés tricolores: apenas o castanho, o mesmo que já existia antes do pó, antes das camisas verdes, vermelhas e azuis. E depois do futuro, quando o pó amarelo começar a assentar, os que ficarem verão que, vista sob o céu limpo, azul e quente, a cidade não existe.

Há apenas um conjunto de casas e prédios e hotéis vazios, rodeados por enormes buracos - a única prova de que tudo não terá sido uma miragem? - escavados por aqueles que vestiram as camisas coloridas. O pó, esse voou para longe, levando consigo a cidade que ajudou a construir e as memórias daqueles que viveram quando ele era apenas simples terra vermelha.

31.5.10

nothing changes (II)

(cont.)

Então, desde que levara um tiro na cabeça do seu antigo colega de secretária na 2ª e 3ª classe, nunca mais foi o mesmo. O seu sonho era poder dizer “eu vou matar à paulada o filho da puta do carteiro que disparou contra mim”, mas a bala que lhe atravessou o lobo frontal do cérebro incapacitou-o de ter emoções ou sentimentos: nem, “ao menos sobrevivi”, conseguia sentir. Depois de quatro meses no hospital, teve alta. Regressou à casa onde foi baleado, limpou ele próprio o sangue ressequido que uns meses antes lhe escorreu da cabeça e decidiu jantar fora. A última vez que comera fora da prisão, de casa ou do hospital havia sido no dia anterior a espancar o turista espanhol. Nesse dia estava acompanhado da sua namorada, o que o levou a recuperar a sua antiga agenda telefónica e a convidá-la para jantar. Não se lembrava dela, mas calculava que devia ser paciente. Após o telefonema sabia que ela estava divorciada, era mãe de gémeos siameses ao mesmo tempo que mantinha o cargo de directora de vendas de um concessionário automóvel online, gostava de comida mexicana, já não jantava fora há sete ou oito meses, período que coincidia com a última vez que tivera sexo com algo que não o seu dildo, vibrador ou chuveiro de massagem, e que estava disponível para jantar no dia seguinte, pelas 20h00.

18.5.10

carta aberta à presidência

Senhor Prof. Cavaco Silva, eu nunca irei apanhar no cu só porque estamos em crise. Obrigado.

30.4.10

nothing changes

Há 20 anos que tinha trocado a expressão fuck you! pela exclamação fuck it!, mas ainda assim apetecia-lhe partir tudo com um taco de basebol. Apenas tinha tido descanso nos 12 primeiros dias de umas férias de 30 que tinha tirado faz agora 13 anos. A década seguinte passou-a numa prisão no México por ter agredido quase até à morte um turista espanhol que lhe roubou a última mesa de pequeno-almoço. Detestava chicos-espertos. A passagem pela prisão também não lhe fez bem, ao contrário do que estava à espera. Aí, aceitou desde início a porrada e os piços no cu sem sequer cerrar o punho. Mas quando saiu ainda era hetero e estava bem pior. Agora vivia fechado em casa, contactando apenas com a senhora que lhe ia levar a comida a casa e com o carteiro, que agora lhe apontava uma arma à cabeça depois de dois anos a sofrer insultos.

5.1.10

ano novo, vida nova

Após a minha passagem de ano, e tudo o que veio a seguir, decidi ir tirar um curso de pirotecnia. Parece que se viaja um bocado e as miúdas ficam impressionadas por ter um homem com dotes de electricista, apenas três dedos numa mão, mas com sensibilidade de florista:
Bonito era começarmos com aquele fogo que parece um foguete e só rebenta lá no alto, seguido do outro que se assemelha a uma estrela do mar, em cor-de-rosa e depois verde e azul. A seguir pomos aquele que parece que rebenta e vem na nossa direcção, em cor amarela. Um não: três desses, seguidos, amarelo, depois vermelho, depois verde. Não, verde, amarelo e vermelho, para ser igual à bandeira, por causa do Mundial deste ano. Pomos depois umas cornucópias em branco, bem bonitas. Repetimos tudo três vezes, em ordens diferentes e terminamos com aqueles que nos transportam para uma noite no Iraque. Vais ver como vamos pôr as pessoas a chorar.

Não parece difícil.

30.12.09

2010

Dois mil e nove foi um ano estranho. Bom, mas estranho, como um "doce da casa" que parece o resultado matinal de uma noite mais animada do cozinheiro, mas que tem aquele sabor maravilhoso a natas e leite condensado. Foi, também, um ano que correu muito rápido, mas que, de tanta coisa que passou, parece ter tido início lá bem longe, como se tivesse demorado bem mais que os regulares 365 dias. Tudo isto torna impossível um balanço relevante aos últimos 364 dias, pelo que nem me vou atrever a tentar fazê-lo. Também não farei - tal como em outras alturas de menor riqueza espiritual - previsões ou desejos para o ano que aí vem. Espero apenas que 2010 seja a concretização de algumas das mudanças que se iniciaram em 2009, para que o próximo ano não volte a ser um ano sem balanço.

O único desejo que gostaria de fazer era o Benfica campeão.

13.11.09

silêncio, que se lê uma obra de arte

É uma ofensa tentar escrever qualquer coisa quando se está a ler o Netherland, do Joseph O'Neill.

14.10.09

where's your head?

Saltou de nenúfar em nenúfar como uma rã estéril. Quando caiu à água, viu um peixe amarelo a sorrir-lhe. Sorriu-lhe de volta. O peixe mordeu-lhe o nariz. Deu uma pantufada ao peixe. Este voou para fora do lago e morreu. Ele veio respirar ao cima da água, qual golfinho, e voltou a descer. Era o rei do lago. E era a primeira vez que se sentia nobre. Nunca mais quis sair lá de dentro. Dois minutos depois morreu afogado. E agora está ali, a boiar.

1.10.09

29.9.09

google heart

- Corre, corre, corre. Quando chegares ao fim, salta para a frente o mais que puderes e, depois, quando começares a cair, dá aos braços... Depois aproveita.
- Mas, mas... eu não consigo voar.
- Consegues. Não te preocupes. Tens é de acreditar nisso. Muito.
- Vou cair...
- Não... não vais. Vá, vai lá para trás e faz o que te disse. Não sejas teimoso!
- Ok, ok... mas vou cair. Os meus pais nunca me ensinaram a voar... Já te expliquei...
- Os meus também não! Descobri que conseguia voar um dia quando saltei da varanda da casa minha tia.
- Pois... mas aqui é uma falésia... Se cair não parto uma perna; morro.
- Não penses nisso! Corre, salta e dá aos braços. Vais ver que sabes voar.
- Ok...ok............ Vá, lá vou eu!
- Vem, anda. A seguir vou eu. Vá.... 1....2.....3!
- 3!
......
- Salta agora!... Boa!!! Dá aos braços, com força!
- Estou a dar... Mas estou a cair! AAAaaiiiiiiiii....
- MAS TU NÃO TENS PENAS???!!!!

28.9.09

concretizado a mais de 200 km/h


Na sexta-feira à noite, um dos sonhos concretizou-se.

25.9.09

palhaços na cidade

Quando era pequeno gostava do circo e as minhas tias gostavam de ir ao circo comigo porque se riam de eu me rir tanto, principalmente dos palhaços. Agora, em grande, já não gosto de circo. Mas ainda me consegui rir bastante nas últimas duas semanas. Mas, no fundo, o circo continua a ser o mais decadente dos espectáculos.

24.9.09

quase voar

Quando abriu os olhos, quase chorou. À sua cabeça vieram-lhe as imagens de toda a sua vida. Toda não, apenas os bons momentos, os de verdadeira felicidade, desde os mais escondidos recantos da memória. Continuou em frente, e a luz continuou a encher-lhe a alma. Queria nunca mais dali sair. Estava no céu. Estava no mar. Olhando para baixo, via a perfeição geométrica das pedras milenares, polidas, quase vivas. Colocadas ali por algo superior a nós. Por um Deus ou uma Ordem Matemática que nos permite respirar. Continuou em frente. Aos ouvidos chegava-lhe um matraquear que lhe relaxava os ossos. Um matraquear que provinha do silêncio que o envolvia e parecia não o querer libertar. Continuou e olhou em frente, onde não conseguia ver o fim, e depois para cima, onde a luz o chamava, parecendo atraí-lo para um novo mundo, pleno de tudo. Decidiu continuar, mais um pouco, até que as pedras se afastaram e decidiu ir em direcção à luz. Já não tinha ar.

21.9.09

a igreja precisa de amigos

Ponto prévio I: sou católico;
Ponto prévio II: tive uma educação católica quase extremista, para um gajo nascido nos anos 80 (tenho quatro de sete sacramentos - baptismo, primeira comunhão, profissão de fé e crisma, e sou padrinho de baptismo, de crisma e, mais recentemente, de casamento);
Ponto prévio III: fui à missa quase todos os fins-de-semana durante cerca de 12 anos e tive participação activa em três ou quatro;
Ponto prévio IV: compreendo que uma religião tenha dogmas inamovíveis e considero que a alteração das principais crenças e hábitos é contra-senso numa religião ancestral.

Mas no passado sábado, enquanto ouvia a homilia (para os leigos, a homilia é a parte da missa em que o padre descodifica as três leituras anteriores e tem um discurso "livre" de evangelização) durante o casamento de um amigo, apercebi-me que a Igreja Católica e muitos dos seus pastores são como aqueles nossos ex-colegas de 5º ano do ciclo que, de tanto quererem ter amigos, eram chatos de irritar e gozados por todos. Até podiam ter coisas interessantes para dizer, mas ninguém suportava o facto de terem as calças até aos mamilos, de se cuspirem todos e terem uma pasta branca nos cantos da boca, de usarem botins, de terem melhores notas que nós e de falarem como o José Hermano Saraiva sobre temas que não eram o Benfica, as nossas colegas ou a Ana Malhoa no Buéréré. A diferença para a Igreja é que agora, passados vários anos, muitos eles mantiveram a mesma conversa, mas conseguiram actualizá-la, o que resultou num maior grupo de amigos.

17.9.09

3.9.09

o vídeo da tvi no youtube

Na busca do tão afamado vídeo que a TVI tem pronto para lançar sobre Freeport, o tal que alegadamente poderá ter levado à suspensão do Jornal da Manela e à posterior demissão em bloco da direcção de informação do canal, fui ao youtube e escrevi "Sócrates Freeport TVI", algo que os jornalistas deverão fazer imediatamente. Ordenei o resultado por datas e o mais recente vídeo é o que se encontra em baixo. E realmente, é comprometedor.

Passo a analisar apenas o primeiro minuto, onde há vários argumentos comprometedores para José Sócrates, que cedo se percebe ser a pessoa por trás da câmara. Note-se que o cameraman é acusado de ter medo de ser filmado (min 0:12), e de, mesmo não sendo artista, ter pretensões (0:22). Quais, fica em aberto, levantando ainda mais a suspeita. Os factos comprometedores estão um pouco mais à frente no vídeo, sendo o cameraman acusado de não filmar as "personagens que passam" (0:40), forma como o artista se refere às miúdas de Nisa, sendo isto mais que suficiente para retomar os boatos relativos à homossexualidade de José Sócrates. Mas a gota de água é quando o cameraman recusa ir "mandar uma garrafa a baixo" porque no dia a seguir tem "vigilância" (1:01), levantando as suspeitas sobre as escutas em Belém. Assim se percebe porque a direcção de informação da TVI caiu.

2.9.09

cross the line

Goza estes dias como se fossem os últimos e apercebe-se disso enquanto caminha. O sinal que viu na porta das traseiras da estação de comboios no dia anterior entristeceu-o. A partir da próxima segunda-feira, esta porta estará fechada por razões de segurança. A entrada será feita pela porta principal da estação. Era de esperar. Há muito que imaginava um qualquer terrorista a entrar por aquela porta não vigiada e a colocar uma bomba por baixo de um comboio. Até pensou denunciar aquilo a uma televisão, pela piada e por o irritar a negligência, mas não, preferia ter a porta aberta. No entanto, nunca percebera porquê. Passar por aquela porta e atravessar a linha de comboio, antes dos apeadeiros da estação, poupava-lhe tempo. E isso agradava-lhe. Mas era algo mais. Também não era por alimentar o seu lado rebelde, entrando por uma porta destinada apenas a funcionários, que aquele caminho o animava quando ia para o trabalho ou voltava para casa. Mas o sinal -lo ver a razão da nostalgia antecipada. Atravessar a linha de comboio transportava-o para outra dimensão, uma dimensão rural, onde a protecção e as restrições à movimentação das pessoas são menores. Onde nem tudo é ruas e os jardins não estão cercados e com placas que proíbem que sejam pisados. A linha de comboio e o atravessá-la, permitia contrariar a rotina e, durante os 20 segundos que dura a passagem das linhas quase fechava os olhos e imaginava que não estava a ir para o trabalho, mais uma vez. Ao invés, a sua mente fugia e refugiava-se na sua juventude, quando passeava pelas quintas dos seus avós, a procurar aventuras e chegava ao fim do dia com as calças cheias de terra e a cabeça repleta de histórias imaginadas.

formato à minha imagem

Parece que os maricas dos meus leitores não gostam de ler textos largos. Perdem-se a mudar de linhas, coitadinhos. Aqui vai uma nova formatação. Ao alto. Como eu.

x

Quando se entra na loja, parece que somos absorvidos por ela: as nossas atenções dispersam-se automaticamente pelo que nos rodeia, e os nossos sentidos ficam alerta com potenciais pechinchas que lá possam existir. Aquilo que nos leva à loja passa imediatamente secundário, até nos focarmos e pensarmos como iremos ser atendidos. Reparamos que já fomos ultrapassados por várias pessoas até voltarmos a agir. Já numerados, o elevado tempo de espera propicia a alguma investigação à oferta disponível na loja. Por fim, quando chegamos ao balcão e dizemos ao que fomos, quase inevitavelmente, leva-se algo na mão que não se queria. E compra-se a um preço mais caro do que nas lojas especializadas. Parabéns a quem pensou as novas lojas dos CTT - comercialmente bem pensadas mas uma inutilidade em termos do seu fim principal. Mas obrigado pelos bons livros que me venderam, a preços ridículamente elevados. Ontem foi o Geração X.

31.8.09

alerta à navegação

O fim-de-semana passado tive a fortuna de ir até ao Algarve aproveitar algumas das melhores praias portuguesas e recordar tempos de juventude e a infortuna de ter perdido uma hora no centro de Albufeira. A minha relação com o Algarve há-de ser semelhante à de muitos outros portugueses, cuja família gastou, durante anos, 15 dias de férias no Verão na região sul: um sentimento de nostalgia e carinho por algumas das localidades mais feias e descaracterizadas de Portugal. A minha relação umbilical com o Algarve é na Quarteira, destino de muitas pessoas da classe média nos anos 80 e 90, e uma das vilas mais feias no sudoeste europeu. Foi aí que passei duas semanas todos os verões dos meus primeiros 15 anos de vida, e onde voltei mais tarde, inexplicavelmente, por duas vezes. Albufeira, essa, descobria-a a pouco e pouco, primeiro com os meus pais, puto e sóbrio, mais tarde com os amigos, puto e bêbedo. E naquela altura, anos 90, aquilo fazia sentido e até era bonito, tendo em conta o provincianismo português, e o meu. Todos os néons, a animação dos bares, o domínio estrangeiro, as inglesas boas, era tudo fantástico e, para muitos, o mais próximo que se conseguia estar de ir ao estrangeiro. Agora, vários anos depois, isso continua, e até aceito que continue, dado que é o que fez crescer a vila, alimenta as famílias e anima as pessoas que gostam daquilo. Só não aceito que se piore tudo vezes sem conta, que se construa prédios em cima de prédios, se acimente parte da praia dos Pescadores, para as estrangeiras poderem andar facilmente de saltos agulha, e que se coloquem duas escadas rolantes exteriores do estacionamento até à praia, para o mesmo efeito. Albufeira é feia e igual a tantos outros sítios turísticos na Europa desenvolvida e "turística". Por isso, Albufeira irá morrer sobre o peso dos turistas ingleses com menos de 20 anos, que um dia decidirão ir para outro sítio, onde haja praia e pessoas de outras nacionalidades. E nessa altura, não haverá nada a fazer para a recuperar e todos os presidentes de câmara da localidade devem ser julgados por homicídio voluntário, com destaque para o último que levou a cabo as mais recentes obras, o sr. Desidério Jorge Silva. Portugueses, alerto-vos, não vão para Albufeira: irão sentir-se tristes e envergonhados. E o vosso bom gosto corre risco de morte.

28.8.09

h1n1

Hoje, lavei as mãos seguindo os preceitos aconselhados pela Direcção Geral de Saúde, que devem demorar entre 40 a 60 segundos a ser implementados. Demorei um pouco menos, sequei-as, abri a porta com o cotovelo e dirigi-me à minha secretária. Lá, abri uma gaveta com o pé, calcei umas luvas de latex e liguei para a Universidade de Coimbra a pedir equivalência para uma cadeira no curso de medicina.

26.8.09

preso

Infelizmente, a agorafobia impedia-o de sair à rua. E de se registar no facebook.

roots

Apesar de tudo, Davide era feliz. Tinha os seus amigos, poucos, os seus pais davam-lhe alguma roupa de marca e andava sempre acompanhado de seu cão. Tinha uma família numerosa, dois irmãos mais velhos e sabia ler. Não sabia lutar, mas corria rápido. Mas, "apesar de tudo" porque tinha a alcunha de "Merdas", ou "O Merdas". A alcunha, ao contrário do que alguns pensavam, não era derivada do seu pai, o Ti Rui, ter um tractor com um reboque limpa-fossas e ser o responsável por que as fossas das pecuárias das várias aldeias da região não transbordassem da merda dos porcos. Também não era, como outros pensavam, principalmente os que assistiram, derivada do dia em que, depois de mais de três horas a apanhar batatas para a sua tia, se borrou pelas calças abaixo, por ter estado a comer uvas curadas com veneno e por não ter tido tempo para as baixar. A alcunha "Merdas" surgiu da imaginação do seu melhor amigo, o Rui, depois de Davide ter recusado ir brincar aos bombeiros pois queria ir espalhar esterco com o seu avô, pai e tios no batatal, para adubar a terra. Segundo argumentou nesse dia, tal como dois dias depois, quando foi confrontado no recreio da escola pelo Rui, e pelos mais 10 miúdos desejosos de gozar com ele, tinha um gosto especial em espalhar o esterco pelos campos, principalmente de estar empoleirado naquele monte de merda de vaca, misturado com palha, com os botins calçados e as calças por dentro deles e uma forquilha na mão, com a qual pegava em pedaços de esterco e atirava tentando criar uma camada homogénea sobre a terra que semanas depois viria a ser cultivada e meses depois daria batatas. Aí, argumentou, sentia-se livre e sem responsabilidades que não fosse levar a vida à terra. Explicou ainda, com muito orgulho e imensa surdez perante os risos histéricos que se acumulavam no crescente grupo que o gozava, até tinha começado a gostar do cheiro. Desde esse dia, perdeu o nome Davide e, na aldeia e na escola, todos o passaram a tratar por "Merdas", ou "O Merdas". Só conseguiu voltar a ouvir o seu nome de baptismo com mais frequência que a miserável alcunha quando entrou na universidade, o primeiro caso na família, um orgulho para os avós. Aí todos o tratavam por Davide. Mas ao fim-de-semana e nas férias, quando partilhava minis com os amigos ou conhecidos no café, continuava "O Merdas". Com o tempo, no entanto, essa ligação nominal à sua aldeia foi-se deteriorando, tal como a ligação física, diga-se, até que desapareceu. Os seus irmãos e primos, os que ficaram na aldeia, estavam proibidos pelas mulheres de pronunciar essa alcunha junto dos seus filhos bebés e, com o tempo, esqueceram-na. Apenas voltou a ser utilizada num Natal, anos mais tarde, quando as crianças já dormiam e a família, numerosa, digeria o bacalhau com umas garrafas de aguardente e de licor abacial e recordava os únicos anos em que foram felizes. Antes de o trabalho lhes ocupar todas as horas que o sol estava disponível. Depois de Ti Rui e a mãe de Davide terem morrido, num acidente com o tractor e o limpa-fossas, um mais moderno e com mais capacidade de armazenagem, "O Merdas" nunca mais voltou à aldeia. Nas partilhas das heranças abdicou de tudo e os irmãos passaram a visitá-lo com maior frequência na cidade onde trabalhava e onde estes iam fazer compras. A ligação à aldeia onde nascera e à alcunha que lhe marcara a juventudo perderam-se. Até recentemente, quando, chegado a casa, Davide se sentou na sua chaise longue, respirou fundo, recordou o que havia feito à sua vida amorosa e desejou estar a espalhar merda no campo. Aí, apesar de tudo, sentia-se feliz.

25.8.09

bye bye motherfuckers

Para todos os gajos portugueses e brasileiros que linkaram os meus posts da Olivia Wilde e da Rosa do Canto e que me andaram a lixar o contador de visitas, digo, apenas, fuck you!

24.8.09

lunch time

Bebeu dois copos de absinto, de penalty. Sentiu e controlou o vómito. Pegou nas folhas em branco e comeu-as. No seu estômago, o suco gástrico fez o seu trabalho e, passadas duas horas, regurgitou um livro. Esfregou-o bem com uma toalha humedecida, para limpar o verde do absinto, e secou-o com o secador do seu pai. Foi ao frigorífico e bebeu leite gordo directamente do pacote, vomitando logo de seguida para a pia. No vómito ainda lá viu algumas folhas riscadas. Lavou os dentes, limpou a boca, ligou ao seu agente e marcou um almoço, para lhe apresentar o livro. Antes de terem acabado os aperitivos, já o livro estava lido. «É uma obra-prima». O agente pediu o menu e leu-o em voz alta.

21.8.09

london by fall

«Que é que estás a fazer, rapaz?»

A pergunta feita por aquela voz conhecida fê-lo estremecer dos pés à cabeça. Depois da hesitação inicial em responder, confessou «Pai, sofro de transtorno obsessivo-compulsivo

«Sofres de quê?»

Percebeu logo ali que iria ser difícil o pai aceitar essa doença, que até aí desconhecia

«Transtorno obsessivo-compulsivo. Uma doença da cabeça.»

«Doença na cabeça?! Mas o que é que essa doença faz? Podes morrer?»

Pois...

«Não, não posso morrer. Simplesmente tenho de ter as coisas muito arrumadinhas... Não tem nada de mal.»

«Ter as coisas arrumadas?»

«Sim... tem de estar tudo simétrico. Até estou a pensar arranjar um segundo cão."

«Mas tu estás parvo? O teu país declarou guerra à Alemanha há dois meses e tu queres ter as coisas arrumadas? Trata é de apanhar ratazanas e de as vender! A fome vai chegar não tarda.»

«Os clientes gostam mais assim» disse entredentes «Aumentei a venda de ratazanas só por as alinhar assim.»

«Só podes estar maluco! Na Grande Guerra não conseguia apanhar ratazanas que chegassem para tanta procura. Não precisava de as por direitinhas. Estavam dentro de um saco, aos montes. E estavam fresquinhas! Não são como estas que andas praí a vender. Apanhadas nas linhas de comboio... as minhas eram do campo. Mas tu não te dás sequer ao trabalho de percorrer 5 milhas de manhã.»

«Pai. Já lhe expliquei que sofro das costas. Não posso andar com um saco de ratazanas às costas durante 6 milhas. Não são só 5. Por isso é que comprei este carrinho de mão tão jeitoso. E não me diga mal das ratazanas, que ainda ontem me disse que não comi um estufado tão bom desde que a mãe morreu com os intestinos desmanchados.»

«Sim, mas grelhadas não prestam para nada. Parecem borracha!»

As lágrimas começaram a correr-lhe pela cara. Não aguentava mais. Possivelmente, tinha apanhado o transtorno obsessivo-compulsivo por causa do pai lhe estar sempre a ralhar e a bater com a bengala na cabeça. Decidiu que nada seria o mesmo desse dia para a frente, enquanto tentava evitar que as lágrimas caíssem para cima das ratazanas. Afagou o cão que o olhava estupefacto, retirou as duas últimas ratazanas que estavam no carro-de-mão, alinhou-as e começou a apregoar. Nem viu o pai ir embora. Nesse dia bateu o recorde de venda de ratazanas da estação de Paddington, mas não conseguiu ficar feliz.

Morreu em Fevereiro de 1941, altura em que já era conhecido como o "Certinho de Paddington Railway". Por essa altura, vendia cerca de 300 ratazanas por dia. E tinha dois cães.

20.8.09

copy cats

Já começa a chatear. Em Portugal, basta vir alguém com uma ideia diferente (que neste particular até considerei interessante) que aparece outro a copiar. É há vários anos com os fogos postos e é agora com as bandeiras monárquicas. Parece que agora são uns quaisquer betos de Cascais que, estando em férias de verão e acharem nojento ficar com as mãos sujas de tinta de grafitti, se lembraram de ir hastear bandeiras monárquicas na Cidadela de Cascais. Opção estranha quando podiam estar numa qualquer garagem da linha a snifar coca e a jogar PES, mas gostos são gostos. O que irrita mesmo é a falta de imaginação. Em Portugal, no geral. Eu até suportaria variantes da piada inicial (Bandeira FCPorto no Dragão pela do Benfica; o Paulo Bento pela estátua do Marquês de Pombal; etc) mas repetir a façanha passo-a-passo, inclusive a criação do blogue, é falta de imaginação. E o interessante é que, à semelhança dos fogos postos, os repetidores é malta sem nada para fazer. Nas matas, tudo começa com os loucos pirómanos ou os interessados empregados de papeleiras e acaba com grupos de gajos a quem proibiram a entrada no café concerto da vila mais próxima. No caso das bandeiras é mais ou menos o mesmo, com as devidas adaptações. Inovem, por favor.

18.8.09

algo sintético, se faz favor

A descrição do meu blogue (aquele texto que está por baixo do nome do blogue) - a partir de agora vou começar a escrever a palavra blogue em português correcto, pois se ainda não me convenci sobre os atletas nacionalizados a representar Portugal, também acho que devemos diminuir ao máximo os estrangeirismos que utilizamos, excepto quando falamos de grandes penalidades, pois aí eu acho que deve ser penalty, porque tem mais piada - está uma merda. Aceito sugestões. Eu sempre tive alguma dificuldade em definir ideias e em sintetizá-las.

17.8.09

be it

"P'ó caralho com tudo!" gritava ele esvaziando os pulmões cheios de tabaco. "P'ó caralho!!!" Estava indignado, como se podia ver. E, segundo algumas das pessoas que o conheciam, tinha razão para o estar. Confidenciavam umas às outras: "Eu não diria 'P'ó caralho!!' mas concordo com ele. Mas nunca se sabe. O Mundo é pequeno". Ele saiu a correr e há quem diga que nunca mais o viram. Eu acredito que alguém o terá visto. Principalmente as pessoas com quem ele se terá cruzado na corrida de fuga, bem como aquelas que terá encontrado no seu ponto final. Eu, pelo menos, voltei a vê-lo. Estava na fotografia da contracapa do livro da sua autobiografia publicada anos após a sua morte, algumas décadas depois da fuga e do corte com a vida passada. Os outros que o conheciam estavam mortos. Eu não. Era miúdo quando ele fugiu e gritou "P'ó caralho!!!", frase que eu nunca mais esqueci e pela qual cheguei a apanhar nas orelhas dos meus pais, por a repetir no meio da sala, quando via os desenhos animados às 7h00 da manhã. Por debaixo da fotografia, através da qual eu identificava um homem que tinha ar de avô do homem que eu realmente vi fugir, estava uma biografia colocada pela editora, que, a meio dizia que a sua mulher se tinha suicidado, depois de ter morto os filhos, tal fôra o desgosto resultante da fuga. Lido isto, voltei a olhar para a capa onde, por baixo do título, estava citada a seguinte frase do autor: "Fui, para que os meus fossem felizes".