26.8.09

roots

Apesar de tudo, Davide era feliz. Tinha os seus amigos, poucos, os seus pais davam-lhe alguma roupa de marca e andava sempre acompanhado de seu cão. Tinha uma família numerosa, dois irmãos mais velhos e sabia ler. Não sabia lutar, mas corria rápido. Mas, "apesar de tudo" porque tinha a alcunha de "Merdas", ou "O Merdas". A alcunha, ao contrário do que alguns pensavam, não era derivada do seu pai, o Ti Rui, ter um tractor com um reboque limpa-fossas e ser o responsável por que as fossas das pecuárias das várias aldeias da região não transbordassem da merda dos porcos. Também não era, como outros pensavam, principalmente os que assistiram, derivada do dia em que, depois de mais de três horas a apanhar batatas para a sua tia, se borrou pelas calças abaixo, por ter estado a comer uvas curadas com veneno e por não ter tido tempo para as baixar. A alcunha "Merdas" surgiu da imaginação do seu melhor amigo, o Rui, depois de Davide ter recusado ir brincar aos bombeiros pois queria ir espalhar esterco com o seu avô, pai e tios no batatal, para adubar a terra. Segundo argumentou nesse dia, tal como dois dias depois, quando foi confrontado no recreio da escola pelo Rui, e pelos mais 10 miúdos desejosos de gozar com ele, tinha um gosto especial em espalhar o esterco pelos campos, principalmente de estar empoleirado naquele monte de merda de vaca, misturado com palha, com os botins calçados e as calças por dentro deles e uma forquilha na mão, com a qual pegava em pedaços de esterco e atirava tentando criar uma camada homogénea sobre a terra que semanas depois viria a ser cultivada e meses depois daria batatas. Aí, argumentou, sentia-se livre e sem responsabilidades que não fosse levar a vida à terra. Explicou ainda, com muito orgulho e imensa surdez perante os risos histéricos que se acumulavam no crescente grupo que o gozava, até tinha começado a gostar do cheiro. Desde esse dia, perdeu o nome Davide e, na aldeia e na escola, todos o passaram a tratar por "Merdas", ou "O Merdas". Só conseguiu voltar a ouvir o seu nome de baptismo com mais frequência que a miserável alcunha quando entrou na universidade, o primeiro caso na família, um orgulho para os avós. Aí todos o tratavam por Davide. Mas ao fim-de-semana e nas férias, quando partilhava minis com os amigos ou conhecidos no café, continuava "O Merdas". Com o tempo, no entanto, essa ligação nominal à sua aldeia foi-se deteriorando, tal como a ligação física, diga-se, até que desapareceu. Os seus irmãos e primos, os que ficaram na aldeia, estavam proibidos pelas mulheres de pronunciar essa alcunha junto dos seus filhos bebés e, com o tempo, esqueceram-na. Apenas voltou a ser utilizada num Natal, anos mais tarde, quando as crianças já dormiam e a família, numerosa, digeria o bacalhau com umas garrafas de aguardente e de licor abacial e recordava os únicos anos em que foram felizes. Antes de o trabalho lhes ocupar todas as horas que o sol estava disponível. Depois de Ti Rui e a mãe de Davide terem morrido, num acidente com o tractor e o limpa-fossas, um mais moderno e com mais capacidade de armazenagem, "O Merdas" nunca mais voltou à aldeia. Nas partilhas das heranças abdicou de tudo e os irmãos passaram a visitá-lo com maior frequência na cidade onde trabalhava e onde estes iam fazer compras. A ligação à aldeia onde nascera e à alcunha que lhe marcara a juventudo perderam-se. Até recentemente, quando, chegado a casa, Davide se sentou na sua chaise longue, respirou fundo, recordou o que havia feito à sua vida amorosa e desejou estar a espalhar merda no campo. Aí, apesar de tudo, sentia-se feliz.

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